quarta-feira, setembro 25, 2013

Umbrae

Faça silêncio... Feche seus olhos... 
Sinta o movimento suave de suas pálpebras... 
Procure a melhor resposta.

Por um instante – pelo ir e vir das
sombras – flagro um sonho que se aproxima.
Passo ligeiro da mente. Córrego sem margens...
Passageiro da mente. Córrego sem destino...

Sombras

Ao fundo, feixe de luz.
Gosto de uma tentativa a mais...
Gosto de romã no nome...
Faixa estranha... Som do escuro.

Luz... Você gosta de sombra?
Inquieto
Sombra... Você gosta de luz?
Sem resposta.

Sombras... Luz...
A resposta roça na língua.
Umbrae... Lux...
Deixa essa língua morta para lá.

Silêncio.

Tome sua melhor resposta.
Sinta o movimento de suas pálpebras.
Abra seus olhos.
Faça silêncio.


Responsio: sim... nossos sonhos deveriam ter copyright.

domingo, março 18, 2012

Life is an accident

Um espermatozoide encontra um óvulo. Chance de 1 em 500 milhões de possibilidades. Outro espermatozoide encontra outro óvulo, anos depois, quilômetros de distância. Chance de 1 em 500 milhões de outras possibilidades. Muitos anos depois, com muitos e muitos zeros de possibilidades, eles se encontram...

Feitos um para o outro. Não eram iguais, nem na cor. Também não eram opostos. Mas se atraíram  Se atraíram tanto, que um dia acabou. Se por ciúme ou sem vergonhice, não importa.

Nesse dia, um táxi levou sua dor e seu orgulho até a praia. Resolveu sair andando pelo calçadão. Era um domingo à noite e não sabia bem o que fazer. Pela primeira vez, depois de muito tempo, tinha liberdade e não sabia o que fazer com ela. Se quisesse andar o resto da noite na beira da praia, poderia.

Queria ter isso registrado exatamente dessa forma em sua mente. A liberdade teria gosto de maresia. Mas não era um gosto agradável. Ardia na base da língua e o cheiro salgado parecia aumentar sua pressão quase que instantaneamente.

Uma loba cantava ao fundo. Ouvia depressivamente e – sozinha e em silêncio – uivava junto com a música. Não tinha lua no céu. Na verdade, parecia que a lua tinha mais vergonha do que ela daquilo que tinha acontecido.

Fez isso quase todos os dias, desde aquele momento em que descobriu que estaria sempre só. Quando não queria partir madrugada adentro, ligava a tv e roncava no sofá até descobrir que ninguém a levaria para a cama. Foram duas semanas, quinze dias que duraram duas eternidades.

Naquele dia, decidiu que não iria correr o risco de encontrá-lo. Era importante ir. Para uma amiga, não para ela: era mais importante preservar sua dor do que uma amizade, imaginava.

Resolveu distrair a cabeça e seguir a rotina. Andaria no calçadão, uivaria para a lua, bateria no peito como uma troglodita para qualquer estranho que passasse, mentindo que conseguiria ser feliz.

Mas viu um saco de pipocas derrubado no chão...

Um casal brigava no ponto de ônibus. Na verdade, uma mulher brigava sozinha no ponto de ônibus. O homem observava o saco de pipocas, que parecia ter acabado de ser disparado contra ele. Mas que importa? Era um saco de pipocas no chão. Eram pipocas espalhadas na calçada que poderiam ter sido divididas, que poderiam ter presenciado um casal e beijos numa sala de cinema, que poderiam ter sido rejeitadas para não grudarem casquinha nos dentes. Só que agora estavam no chão, derrubadas, presenciando uma briga que parecia não ter fim. Ela não sabia o que a mulher louca dizia. Nem sabia se ela era louca ou não.

Deu meia volta e obedeceu o que as pipocas tinham revelado a ela.

Apartamento adentro, decidiu que aquela seria a noite. Faria a Olhos nos olhos. Estaria exuberante. Colocaria o melhor vestido... Não. Colocaria o vestido preferido dele. Conversaria com aquele cara que ele detestava. Mostraria suas gengivas – que costumava não mostrar para ninguém – para todo mundo. Pareceria estar feliz... mas não para vê-lo arrasado. Quer dizer... em parte era, mas não era esse seu objetivo final.

Já tinha imaginado. Iria esperar que ele chegasse. Sabia que ele viria falar com ela. Sabia que ele reclamaria daquele cara e de suas gengivas.

Não ficaria muito tempo. Seu plano poderia não dar certo e o cheiro dele ficaria de novo impregnado na sua cabeça.

...

Não importa o que ele fez ou disse. Na verdade, nem lembra direito como tudo aconteceu. Só sabe que, em pouco tempo, estava nos braços dele, exatamente como havia planejado.

Ela sabia que era dele e ele dela. Sempre soube. Desdo o primeiro dia. Desde quando não lembrava os nomes dos atores e não sabia letra de música. Desde quando não decorava falas de seriados e filme nacional era sinônimo de filme cabeça. Desde quando ele ainda não era dela e ela já era toda sua. Toda.

domingo, maio 01, 2011

ao bisavô com carinho

Botava logo seus óculos de sol cor-de-rosa, sainha rodada e pedia ajuda a quem quer que estivesse perto para amarrar as orelhinhas de coelho no sapato.

Penteava rapidamente o cabelinho cuia e já começava a contar os segundos que faltavam para o momento tão esperado: ir ao açougue era mais que sensacional.

Podia perceber o cuidado que ele tinha ao manusear o pedaço de alcatra, mesmo diante da violência com que a carne era arremessada contra a bancada. Esse barulho era fascinante...

E o barulho da faca no amolador? Som inexplicável. Colava o nariz no vidro gelado e tentava observar o mágico espetáculo por entre os pedaços enormes de carne pendurados em exposição.

Ficava implorando por almôndegas, só para assistir a voracidade do moedor de carne - e olha que nem gostava tanto assim da ideia de pedaços de carne boiando no molho borbulhante.

Prestava muita atenção ao movimento das mãos manuseando o papel que embrulhava os pedaços de picanha. Ia pra casa e treinava vendendo meias para o churrasco de bonecas.

O avental branco todo respingado de sangue não lhe assustava. Pelo contrário: respeitava-o. Lembrava das histórias do bisa que contavam. O cheiro de sangue também não lhe incomodava. Talvez estivesse impregnado em seu dna, quem sabe?

Só uma coisa atrapalhava esse momento: o zumbido da mosca. Na visita ao açougueiro tem sempre uma mosca atrapalhando.

Aprendeu mais tarde que na vida tem sempre uma mosca na sopa... mas aí é só comer carne sempre.

Nunca falha.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Naquela mesa

Não podia faltar tender. A bolinha saía do forno e preenchia a casa toda com aquele cheiro salgado. Ia direto para a mesa depois de fatiado bem fininho. Não ficava no centro da mesa. Ficava ali, perto das nozes e daquilo que parece uma barata e que eu nunca lembro o nome.

Não importava muito o que faltasse ainda à mesa. Estando ele lá, considerava-se, oficialmente, aberto o único período de come-come coletivo e indiscriminado do ano. Cada um passava pela mesa e bicava aquilo que lhe agradasse. Não por gula, mas pelo simples fato de poder começar a fazer parte do ritual.

As crianças brincariam até tarde – ou até quebrarem todos os brinquedos novos: isso também era parte do ritual.

Os parentes começariam a brigar por sei lá que motivo. Alguém tinha que gritar, outro tinha que ofender alguém e, com certeza, alguém precisava chorar: isso era fun-da-men-tal.

Ele não. Não queria participar de ritual tão importante desse jeito furtivo. Não...

Ele se dirigia à mesa e buscava, estrategicamente, a cadeira melhor posicionada. Sempre perto da bolinha já fatiada. Não era necessário prato. Bastava um garfo, já que odiava engordurar as pontas dos dedos.

Fazia do momento seu próprio ritual.

Puxava para perto as nozes, que passava a noite toda quebrando com as próprias mãos. Era uma forma máscula de mostrar que aquilo era para ele uma diversão. Quem nunca tinha visto, sempre comentava, nossa, que forte, para desgosto da mulher que ouvia da cozinha...

O peru – ou, dependendo da economia externa e da alta do dólar no ano, o chester – ficava posicionado no centro da mesa. Não importava quantas pessoas tinham para comer. Ele não se preocupava: a coxa direita era sempre sua. Aquele coxão vinha parar num prato com bastante salpicão e farofa, como se a saladinha e um pouco de farinha com manteiga fizesse diferença. A coxa já era sua.

Depois, atacava os bolinhos de bacalhau, preparados, cuidadosamente, pela sogra. Era batata a dar com pau. Bacalhau sempre do bom e do melhor. Aqueles pedaços grandes, a cebola bem cortadinha e, claro, salsinha bem picadinha. Isso sim lhe fazia feliz. Essa mistura depois de enrolada e frita o prendia à mesa até o último farelinho bem engordurado. Só aí ele poderia se desgrudar da cadeira.

Todos iam dormir cedo, já que tinham passado quase o dia todo em uma corrida contra o tempo para que tudo estivesse perfeito antes da meia noite. Ele não. Resistia bravamente. Ficava ali, aproveitando aquele momento durante todo o tempo que o volume de seu estômago permitisse – e, diga-se de passagem, isso demorava um bocado.

No dia seguinte, o café da manhã era servido na mesma mesa e lá estava ele, para um segundo round. Só que agora, devorava as rabanadas. Essas eram, propositadamente, postergadas para a manhã seguinte, já que ele as preferia frias e borrachudas.

Depois da última rabanada, considerava-se, temporariamente, encerrado o ritual. Uma semana depois, tudo se repetiria e a mesa estaria, novamente, rodeada.

Hoje... Bem, hoje naquela mesa, tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim.

domingo, novembro 07, 2010

Ítaca não te iludiu

Era como se nunca tivéssemos nos visto. A janela do quarto, entreaberta, deixava entrar um pouco do vento que conduzia a maresia, velha amiga. A luz, já fraca pelo horário, não permitia que se visse o estado [e o estrago] em que nós dois nos encontrávamos.

Sempre que o via, procurava não demonstrar e acabava sempre disfarçando algumas poucas lágrimas que forçavam cair pelo rosto abaixo. Às vezes, lia para ele. Outras, assistia ao seu lado a algum programa desinteressante na televisão. Na maior parte das vezes, preferia ficar na cabeceira da cama, em silêncio, penteando suas sombrancelhas.

Hoje, essas noites não parecem mais tão longas como pareciam. Todas as horas ao seu lado demoravam-se para passar, e o tanto de dor e sofrimento parecia que durariam para sempre.

Foram muitas noites, muitas lágrimas, soluços e aquela angústia incontrolável, que dói dentro do peito como se o pulmão desejasse vida própria. Tudo isso desde o primeiro momento. Desde aquela tarde na sala de espera, esperando algo que não se desejava, que traria a certeza de que era melhor não se saber de nada, não fazer nada.

Ainda assim, muita coisa foi feita, muito se tentou. Até a última palavra ainda coerente, até o último movimento de braços e pernas coordenadas, até o último instante de lucidez.

O gotejar da morfina se fazia presente, e cada gota, um pouco mais, ratificava a ausência de dor.

Para ele, não para mim.

Até ali, todos os esforços poderiam parecer em vão, mas a maresia trazia mais do que esperança. Trazia uma promessa.

Morreu dois dias depois. Uma segunda de manhã, enquanto se preparava o almoço e um bolo de aniversário que jamais seria repartido.

E agora sabes o que significam Ítacas.
Kavafis

segunda-feira, setembro 13, 2010

intolerância a lactose

Dois sacos de leite, numa sacola de mercado. Sacola daquele bege sujo, já quase furando. Dava para ver a marca do leite. Não era lá essas coisas. Daquele tipo de leite aguado, que nem dá para brincar de bigode. Se bem que ela não parecia gostar de brincar de bigode. Na verdade, não parecia gostar de muita coisa.

Entrou no ônibus falando sozinha. Não cumprimentou o motorista, não falou com a trocadora. Passou um cartão gasto no leitor e, imediatamente após ter sido autorizada a passagem, atropelou suas próprias pernas e xingou aquele alguém inexistente que lhe fazia companhia e lhe confundia o caminho.

Sentou-se no fundo, não antes de encarar o casal de adolescentes no primeiro banco, a mulata no canto sozinha e a mim.

Destinou um ou outro resmungo ao casal, que pareceu não se importar – ou nem ouvir – e aproveitar o restante do caminho de trocas salivares.

Distraiu-se, por alguns minutos, encarando o vidro de sua janela que batia no ritmo dos paralelepípedos da rua. Acredito que imaginava poder fazer seus poderes atravessarem as moléculas frouxas e silenciarem aquele vazio.

Não adiantou.

Provocou novas injúrias indecentes, agora destinadas à mulata solitária. Não aparentava ser o desejo de um apartheid situacional, mas a necessidade desesperada de um autismo voluntário, de ausência sem culpa e um ônibus só para ela, uma vida só para ela.

Olhou para mim. Fiquei esperando a reação que caberia ao expectador mais incrédulo daquele improvisado espetáculo. Ela não reagiu. Apenas me fitou, enquanto brincava com o quase furo do saco plástico bege.

Depois de alguns segundos nessa cena vazia, o saco, já esbranquiçado de tanto ser esgarçado, furou. Só percebeu o que havia feito quando sentiu o gelado do leite um pouco mais forte na ponta dos dedos. Olhou para o colo, onde a sacola até então estava caída. Com a cabeça ainda baixa, retornou lentamente os olhos para mim. Mais lentamente ainda, uma lágrima teimava em não querer cair. Durante o trajeto, estacionou por duas vezes e, por frações de sua respiração, perdi meu ponto.

sexta-feira, abril 09, 2010

Era minha alma. Hoje, não a tenho.
Peço-a emprestado por aí, em qualquer esquina.

Falta como uma perna, ou um braço, embora a ausência física seja a menos ausente das memórias. O cheiro, a voz, as memórias são muito mais perturbadores do que a ausência em si.

Ou melhor, a presença era mais perturbadora.
Hoje, ela seria mais verídica do que antes.

Todos as sensações, escorregões, porradas, risadas... choros nunca houve.
Na verdade, uma única vez. no primeiro dia.

No primeiro dia e no dia em que ele me roubaram.

A merda da amizade é isso.
Sempre chega a hora de dizer adeus.