quinta-feira, março 11, 2010

apêndice

Ele entrou pela janela do ônibus. A última, lá de trás.

Ficou preso pela cintura e não conseguia, por mais que se esforçasse, entrar ou sair.

Depois de muito disse-que-disse, chora-não-chora, venta-não-venta, cai-não-cai...

Veio o fortão de regata e tentou desobstruir a janela. Veio a velha e tentou mobilizar a todos com a histeria particular da velhicidade. Veio o trocador e tentou fazer a velha parar de encher. Veio a barraqueira e tentou parar o ônibus na próxima delegacia. Veio o motorista e tentou se livrar do problema.

Mas ninguém aqui vai querer problema...

Tentaram puxar para dentro. Tentaram empurrar para fora.

A senhora resolveu mudar de lugar e tirar um cochilo agarrada à bolsa.

Duas mulheres – uma com o filhote a tira colo e a outra ruminando um pacote de pipoca doce – também resolveram se afastar do qui pro quo.

Atrapalhando a conversa...

O terno um pouco atrás preferiu não arriscar o vinco do tecido com uma confusão tão simplória. Desceu do ônibus e pegou um amarelinho.

Táxi!

Um outro dormia um pouco atrás.

Outro, tentava não roubar, não matar e, humildemente, atrapalhar a bagunça da viagem para distribuir paçocas aos presentes.

Se o cara não estivesse tão preocupado tentando se soltar, tentaria vender para ele também.

Um policial foi chamado – depois que o trocador desistiu da empreitada inicial. Mas não poderia fazer muita coisa, pois preocupava-se um tanto mais com as paçocas que não deviam estar ali.

Ele só esperneava. So tentava um pouco mais se soltar. Tentava respirar ao mesmo tempo que gritava por socorro, xingava a velha e tentava não cair.

O motorista, para não chegar atrasado no ponto final, pisou no acelerador como se ignorasse a existência de um apêndice humano na janela do seu carango.

Passaram pela segunda lombada e quase conseguiu se soltar.

Passou pela primeira curva e conseguiu se segurar.

Passou pelo primeiro sinal vermelho e a freada o fez cair.

Ficou ali, junto ao meio fio por alguns minutos. Ônibus parado, sinal fechado.

Ria como nunca havia rido. Gargalhava. Tinha se machucado, mas, o que importa? Era livre de novo. Nunca mais pegaria ônibus. Nunca mais sairia do nível do chão.

Nunca mais.

O ciclista entregador de flores não viu.

Cérebro e pétalas por todo lado.

terça-feira, março 02, 2010

todos os sentidos

Sentiu-o como o calor que se direciona à nuca. Um calafrio que enrijece o bico dos seios. E então, sentiu todos os pelos do corpo. Poderia contá-los, um a um.

De um instante para o outro, a adrenalina preenchia seu corpo fazendo pulsar sua mente, seu coração, todo o seu corpo.

A pele cada vez mais sensível ao toque dos dedos.

Os dentes cravavam seus lábios e a dor tornava-se uma dormência prazerosa.

Tentava controlar a respiração, cada vez mais ofegante.

O cheiro da cena, do hálito, do suor.

Do suor tinha também o gosto...

Via e ouvia todos os sentidos.

Quando acabou, seus sentidos todos deixaram de fazer sentido e o calor derreteu seu cérebro.