segunda-feira, setembro 13, 2010

intolerância a lactose

Dois sacos de leite, numa sacola de mercado. Sacola daquele bege sujo, já quase furando. Dava para ver a marca do leite. Não era lá essas coisas. Daquele tipo de leite aguado, que nem dá para brincar de bigode. Se bem que ela não parecia gostar de brincar de bigode. Na verdade, não parecia gostar de muita coisa.

Entrou no ônibus falando sozinha. Não cumprimentou o motorista, não falou com a trocadora. Passou um cartão gasto no leitor e, imediatamente após ter sido autorizada a passagem, atropelou suas próprias pernas e xingou aquele alguém inexistente que lhe fazia companhia e lhe confundia o caminho.

Sentou-se no fundo, não antes de encarar o casal de adolescentes no primeiro banco, a mulata no canto sozinha e a mim.

Destinou um ou outro resmungo ao casal, que pareceu não se importar – ou nem ouvir – e aproveitar o restante do caminho de trocas salivares.

Distraiu-se, por alguns minutos, encarando o vidro de sua janela que batia no ritmo dos paralelepípedos da rua. Acredito que imaginava poder fazer seus poderes atravessarem as moléculas frouxas e silenciarem aquele vazio.

Não adiantou.

Provocou novas injúrias indecentes, agora destinadas à mulata solitária. Não aparentava ser o desejo de um apartheid situacional, mas a necessidade desesperada de um autismo voluntário, de ausência sem culpa e um ônibus só para ela, uma vida só para ela.

Olhou para mim. Fiquei esperando a reação que caberia ao expectador mais incrédulo daquele improvisado espetáculo. Ela não reagiu. Apenas me fitou, enquanto brincava com o quase furo do saco plástico bege.

Depois de alguns segundos nessa cena vazia, o saco, já esbranquiçado de tanto ser esgarçado, furou. Só percebeu o que havia feito quando sentiu o gelado do leite um pouco mais forte na ponta dos dedos. Olhou para o colo, onde a sacola até então estava caída. Com a cabeça ainda baixa, retornou lentamente os olhos para mim. Mais lentamente ainda, uma lágrima teimava em não querer cair. Durante o trajeto, estacionou por duas vezes e, por frações de sua respiração, perdi meu ponto.