quarta-feira, outubro 28, 2009

epifania

Ontem tive um sonho.
Não foi um sonho comum.

Fico pensando se algum sonho é comum... Nunca é, eu acho. Na verdade, um sonho incomum é algo comum. Sempre um algo de absurdo, um algo de inexplicável, e, talvez mais do que isso, um algo de inebriante, de aconchegante.
O meu não. Foi um sonho... na verdade, o comum para mim é não sonhar. Não sonho nunca. Acho que é o hábito. As pessoas só costumam sonhar dormindo se sonham acordadas. É uma espécie de treino.

Mas nunca fui de sonhar acordada. Passo a noite no vazio, esperando acordar. Ou talvez esse seja o meu sonho repetitivo. Sonhar que estou esperando acordar. Ou sonhar que não fui dormir e que ainda estou ali, olhando para o nada no escuro e fingindo que não estou pensando em nada, enquanto espero o nada acabar.

terça-feira, outubro 20, 2009

Ninguém tem educação para comer

Ela passou vendendo panos de prato. Rosto enrugado de muito olhar, das poucas vezes em que se fazia ouvir, dos raros momentos em que deixou os dentes à mostra.

Já não tinha mais tantos dentes. E eles não faziam tanta falta, como também nunca fizeram. Não comeria carne. Nem naquele dia, nem no dia seguinte. Antes, comia de tudo. Ou melhor, de tudo que dava. Comia bife, frango... menos peixe. Não gostava do cheiro.

Também não gostava do seu cheiro hoje. Tomava banho todos os dias, mas nem sempre gostava do cheiro que ficava. Quando seu rosto não era enrugado, gostava de tomar banho com os sabonetes de caixinha. Aqueles com cheiro de vovó. Talvez gostasse porque sabia que seu cheiro de idosa incomodaria. Sempre foi fraca. Com esses sabonetes, precisaria sempre esfregar menos. O cheiro impregnava. Impregnou tanto que poderia senti-lo agora, tantos anos depois, ali na calçada, vendendo panos de prato.

Mas os dentes...

Mesmo sem ter muitos, os exibia para quem passava. Não era um sorriso. Desde que percebeu que o muito café os tinha manchado, procurava mostrá-los o menos possível.

Ao por do sol, era hora de juntar as coisas e ir para casa. Não teria ninguém esperando por ela. Não tinha obrigação de chegar no mesmo horário, mas chegaria.

Era sempre o mesmo ônibus. Era sempre a mesma situação. Iria em pé. As pessoas nunca têm educação com os idosos. Com ela, nunca tiveram mesmo. Entraria no ônibus, como sempre entrou, e não esperaria se sentar, como nunca esperou.

Iria em pé, para fortalecer as pernas. Como não comia, elas precisavam sustentar ao menos o peso de sua velhice.

Ninguém tem educação para comer.

sexta-feira, outubro 09, 2009

joão e maria

ela olhou diretamente para ele e não encontrou o que procurava, mas também já achava não procurar muita coisa.

ele olhou diretamente para ela, até sentiu algo físico, mas não a reconhecia mais.

ela se desculpou pelas muitas palavras.

ele não sabia mais se havia ainda algo a dizer.

era saudade, mas logo passou.

quando ele chegou, pensou ter visto a cama desarrumada, louça de café na pia e sapatos na porta, mas tudo estava como havia deixado.

o corpo dela precisava se apoiar no travesseiro, já que, de outra forma, não conseguiria dormir.

toda noite, poderia jurar sentir o perfume dela, só que, agora, não espirrava como antes.

o apartamento seria devolvido, pois ele estava em todos os cômodos.

ele queria se sentir cômodo no novo aluguel, mas sem o incômodo de antes não conseguiria.

ela recusou.

ele se ressentiu.

ela se ressentiu...

ele... .

ela... .

eles

terça-feira, outubro 06, 2009

Toda mulher é um pouco bruxa

Por que não cantamos as bruxas?
Por que raramente contamos suas histórias tristes?

São sempre as mesmas histórias.
Sempre as mesmas borralheiras, branquelas e letárgicas.

Nunca ouço as bruxas.
Nunca as vejo.
Não conheço suas histórias tristes.

Sempre de lado, escondidas, profanadas.
Impuras, medíocres e que vão embora antes da história acabar.

Para onde as bruxas vão quando a história acaba?
Onde estão escondidas quando esquecemos delas?

sábado, outubro 03, 2009

re-fazer

Não. Esse não é um retorno.

Mas se não estivesse pronta para voltar, seria fuga. Fuga do nada e, por isso, fuga de tudo.

O ontem apareceu de novo. Às vezes, aparecia só para assombrar e fazer pensar sobre o amanhã. Hoje ele apareceu para fazer pensar sobre aquilo que não deve ser pensado, nem tocado, nem sentido, nem descoberto. As sinapses também não ajudaram.

O cheiro dele fez com que o de sempre voltasse ao de antes. E o cheiro se transformou em uma dor aguda e anestesiante, mas uma dor boa, um cheiro bom. Foi, pelo menos, menos assustador. Menos para o ontem. Esse ficou lá trás.

E então eu retorno, mas não para voltar.

Para ir embora.