domingo, novembro 07, 2010

Ítaca não te iludiu

Era como se nunca tivéssemos nos visto. A janela do quarto, entreaberta, deixava entrar um pouco do vento que conduzia a maresia, velha amiga. A luz, já fraca pelo horário, não permitia que se visse o estado [e o estrago] em que nós dois nos encontrávamos.

Sempre que o via, procurava não demonstrar e acabava sempre disfarçando algumas poucas lágrimas que forçavam cair pelo rosto abaixo. Às vezes, lia para ele. Outras, assistia ao seu lado a algum programa desinteressante na televisão. Na maior parte das vezes, preferia ficar na cabeceira da cama, em silêncio, penteando suas sombrancelhas.

Hoje, essas noites não parecem mais tão longas como pareciam. Todas as horas ao seu lado demoravam-se para passar, e o tanto de dor e sofrimento parecia que durariam para sempre.

Foram muitas noites, muitas lágrimas, soluços e aquela angústia incontrolável, que dói dentro do peito como se o pulmão desejasse vida própria. Tudo isso desde o primeiro momento. Desde aquela tarde na sala de espera, esperando algo que não se desejava, que traria a certeza de que era melhor não se saber de nada, não fazer nada.

Ainda assim, muita coisa foi feita, muito se tentou. Até a última palavra ainda coerente, até o último movimento de braços e pernas coordenadas, até o último instante de lucidez.

O gotejar da morfina se fazia presente, e cada gota, um pouco mais, ratificava a ausência de dor.

Para ele, não para mim.

Até ali, todos os esforços poderiam parecer em vão, mas a maresia trazia mais do que esperança. Trazia uma promessa.

Morreu dois dias depois. Uma segunda de manhã, enquanto se preparava o almoço e um bolo de aniversário que jamais seria repartido.

E agora sabes o que significam Ítacas.
Kavafis

Um comentário:

Letícia disse...

O que é este texto, Rebecca?

Você só escreve preciosidades!

Obrigada, minha amiga.