terça-feira, outubro 20, 2009

Ninguém tem educação para comer

Ela passou vendendo panos de prato. Rosto enrugado de muito olhar, das poucas vezes em que se fazia ouvir, dos raros momentos em que deixou os dentes à mostra.

Já não tinha mais tantos dentes. E eles não faziam tanta falta, como também nunca fizeram. Não comeria carne. Nem naquele dia, nem no dia seguinte. Antes, comia de tudo. Ou melhor, de tudo que dava. Comia bife, frango... menos peixe. Não gostava do cheiro.

Também não gostava do seu cheiro hoje. Tomava banho todos os dias, mas nem sempre gostava do cheiro que ficava. Quando seu rosto não era enrugado, gostava de tomar banho com os sabonetes de caixinha. Aqueles com cheiro de vovó. Talvez gostasse porque sabia que seu cheiro de idosa incomodaria. Sempre foi fraca. Com esses sabonetes, precisaria sempre esfregar menos. O cheiro impregnava. Impregnou tanto que poderia senti-lo agora, tantos anos depois, ali na calçada, vendendo panos de prato.

Mas os dentes...

Mesmo sem ter muitos, os exibia para quem passava. Não era um sorriso. Desde que percebeu que o muito café os tinha manchado, procurava mostrá-los o menos possível.

Ao por do sol, era hora de juntar as coisas e ir para casa. Não teria ninguém esperando por ela. Não tinha obrigação de chegar no mesmo horário, mas chegaria.

Era sempre o mesmo ônibus. Era sempre a mesma situação. Iria em pé. As pessoas nunca têm educação com os idosos. Com ela, nunca tiveram mesmo. Entraria no ônibus, como sempre entrou, e não esperaria se sentar, como nunca esperou.

Iria em pé, para fortalecer as pernas. Como não comia, elas precisavam sustentar ao menos o peso de sua velhice.

Ninguém tem educação para comer.

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